Marquei psicóloga. Ela pediu que eu falasse um pouco sobre mim, sobre minha vida, sobre o que gosto e não gosto e sobre o que me incomoda. Jorrando, de ímpeto, vomitei simbolicamente tapetes, sofás, poltronas, fogões, geladeiras, algumas reformas pequenas, outras talvez nem tanto. Rebocos esfarelados de alvenaria, pó de madeira lixada, ajustes justapostos, justamente nunca perfeita mente justa. Portas e batentes cupinzados, aspira dor, pr’egos e para fusos, mart’elos e fura dor, dito mais propriamente, furadeira. Persianas tortas emperradas, elétrica, hidráulica, tomadas, interruptores, plafon, sifão... (Aprendi até nomes técnicos usados pelos empreiteiros, ainda que na minha rasura).
Nesta empreitada, sifão até me lembra o mito de Sísifo, que apelido não sei se carinhosa ou menosprezadamente de Sifão, num justo e cabido aumentativo, diante do seu subir e descer resoluto e infindável. Isto me causa um desconforto diante da escolha de um veredicto: Ele está resignado, determinado ou desesperado? É sua neura, e muitas vezes minha. O descer do sifão das pias é a terapia dos banheiros e das cozinhas, já o seu subir é a treva. Para mim, confusa entre mito e carne-viva, adiciono milhões de ciclos a compor minha montanha, na loucura de uma simples mortal enleada em seus meandros de vida.
Isto tudo não se deu tão especificamente nesta ordem com a psicóloga, numa fala deste jeito, em sugestões de trocas de morada e ou de reformas. Mas de fato algo concreto aconteceu. Num exíguo espaço de tempo de 10 meses executei - SIM - executei com disparos à queima roupa o meu sossego e paz de espírito, há 10 anos consolidados, realizando duas mudanças de residência. E o pior ou melhor de tudo é que lamento, mas não me arrependo. Esta aventura se deu de forma requintada, com direito a tudo, caminhão de mudanças, empacotamento e desempacotamento, amontoo de roupas, louças e talheres, abdicação de objetos sagrados, descarte de ninharias valiosas, reformas rumo a adaptações na nova morada, estratosféricas despesas, e a pergunta silenciosa, oculta em cantos de breves descansos “pra que isto tudo?”.
Entre este espaço desbaratado de alguns meses e o singelo espaço de 50 minutos de uma consulta, lanço mão das partes mais trágicas da minha vida. Noooossaaa! Tive tantas bênçãos, mas me cubro de desgraças nesta pescaria de memórias. Algo me cutucava a dizer “não vai dar tempo de tirar o pano deste baú por inteiro! Além disto tem o tampo velho, desgastado, como vais girar a chave nesta fechadura enferrujada?”. Mas fui vomitando, após uma golfada vinha outra e outra e mais outra. Só depois de alguns dias passados percebi este ajuste que mudou o trem de direção, do físico para o metafísico, das mudanças de moradia para as mudanças abruptas de identidade em que tombei por puro capricho do destino. Umas escolhidas, ainda que equivocadamente, ou inadvertidamente, porém outras sem escolhas.
Salto das paredes rígidas do concreto cujo sangue é frio e insensível, para meus ciclos de vida mais significantes. Diferente das paredes de tijolos, meus limites são permeáveis, vão se misturando ao sabor das gerações, em suas ideias e ideais, ideologizados, conflitados e guerreados, onde a paz e o amor são fantasias tolas. Os sifões portadores de esgoto continuam sua missão, e escoam desta feita sangue contaminado de bactérias e vírus de uma vida inteira de 75 anos. Eis a explosão psicológica incontida. Hiroshima e Nagasaki se convertem em pálidas imagens para quem não as viveu. Incluso nesta explosão pictórica, grátis, sem pedir nem imaginar, eclode uma pandemia e posterior enchente avassaladora, que é preciso transmutar em “dias melhores virão”.
Foi neste pano de fundo, desta vez tecido de algo dão, que encaixei minha fala sobre minha vida. É preciso pôr em caixinhas o caos da transição do tempo inalcançável em seus circuitos. Organizar as mudanças que escolhemos, embora muitas vezes tão difíceis quanto as que não escolhemos. Enfim. O apartamento que coube no meu bolso para comprar uma nova morada se transformou num projeto de reconstrução de um trajeto de vida, desta feita, bem mais próximo do fim. Os planos da psique são silenciosos e um tanto emaranhados em significados mil. Mudar requer entender cifras. Sim, óbvio - talvez nem tanto para mim – as mudanças podem se valer de reciclagem. Material pode ser adquirido num fornecedor de materiais de demolição.
Não é uma reforma. É uma forma reeditada de viver. Revista e atualizada pela IN – Inteligência Natural, arquitetada pelo simplesmente viver. Cabe à minha sanidade adaptar pedras e nuvens em seus devidos lugares. Embora estes “devidos” nunca deixem de me fazer endividada, pois nunca me satisfaço em viver de faz-de-conta. Loucura e sanidade? Precisam por vezes se entreolharem, e até dialogarem, ou serem olhadas e dialogadas, quem sabe. Este é o papel dos séculos. Sísifo que o diga. Eis a utilidade da intermediação de uma psicóloga.
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