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Eu e meus antepassados

  • Foto do escritor: irenegenecco
    irenegenecco
  • 25 de mai.
  • 17 min de leitura


Aqui está minha mini biografia, com ênfase em meus antepassados, na íntegra. Quem quiser ler aos poucos, tem 6 capítulos deste texto anteriores, neste blog.


Ante o passado vejo a obviedade de que tudo já passou, porém algo permanece vivo nas minhas lembranças, principalmente quanto aos meus antepassados mais distantes da minha geração, que nem sequer cheguei a conhecer ou sabê-los na minha linhagem mundana. Quanto aos ancestrais, o que sinto me parece mais coletivo do que individual. Mesmo assim, me transportando imaginariamente à ancestralidade, me sinto dentro de uma bolsa quente e acolhedora, como envolvida num líquido amniótico etéreo que sustenta toda a humanidade. Seria interessante se pudéssemos perguntar “Qual é a sua ancestral idade?” Ou seja, há quanto tempo você começou noutra pele que não a sua atual? Caberiam algumas interpretações para dar algumas respostas. A que pele se refere a pergunta? Esta que nos encobre o corpo físico? Ou o invólucro antropológico tecido ao longo da evolução humana? Pergunto-me sobre a eternidade, a qual ninguém tem definição, a não ser como algo que não tem fim. Mas e o que é fim? Fala-se de eternidade, num âmbito abstrato, e esta não tem começo nem fim.

Porém, quando a pergunta é quem somos e de onde viemos o céu se nubla e cabe a cada um escolher entre milhões de hipóteses conceituais, científicas, religiosas, filosóficas.  Encontramos algumas respostas que nos acalmam os ânimos. Quando olhamos para trás buscamos nossos ancestrais familiares, nosso clã, e é bem mais possível alcançarmos notícias concretas, reduzindo nossa busca a 5 ou 6 gerações passadas. Acredito que sou da sétima geração do padre Giuseppe Gnecco que veio ao Brasil, de Gênova, Itália, já acompanhado de uma mulher francesa, Magdalena Peixer, considerando meu lado paterno. Do lado materno, Elci Azeredo, já não tenho muitas informações, a não ser quanto à semente de Bento Gonçalves e uma negrinha escravizada, cujo nome já não lembro, pois carece de documentos que o legitimem.

Carregamos nossos ancestrais debaixo da pele. Somos uma herança de DNAs, biologicamente falando, e que não nos cabe alterar por conta própria. Somos também a herança cultural, social e histórica, simplificando e reduzindo este complexo arcabouço. Neste nível cada geração vai deixando seus rastros próprios. Quer queiramos ou não, gostemos ou não, vertemos em nossas veias suas lutas, suas dores, suas perdas, suas vitórias, repensando, revivendo, reorganizando. Embora a ciência já confirme que tudo é energia, muito poucos aceitam que vivemos num universo movido a energias, não só físicas, visíveis, mas etéreas, invisíveis aos olhos mas que nos afetam para o bem ou para o mal, em miasmas de raiva, dor, desesperança e medos, conforme nosso coração e nossa mente nos guiem, diante de maiores ou menores injustiças. E vamos recebendo o bastão que repassaremos ao próximo. De fato, ante o passado nos conscientizamos de nossas raízes e nos fortalecemos. Meus antepassados me revestem de concretude, pois têm lugar, ano, cultura, povo, era.  

Quanto à origem paterna, traço os limites de época entre idos de 1840, aproximadamente, até nossos dias. As origens do lado materno coincidem com esta época também. Não é um tratado, é uma leve baforada do tempo, que sopra geográfica, cultural e pessoalmente, que ao meu limitado saber se revela começar no Brasil nos idos do século XIX. Entenda-se com muita clareza que este “começar”, portanto, é restrito a datas palpáveis, pois a rigor é melhor apossar-se da afirmação categórica de que tudo o que começa termina, mas a vida não tem começo nem fim, é eterna.

Nasci em Minas do Butiá, cidade de minas de carvão, bem próxima a Porto Alegre. De família biológica carente, com referência a nível financeiro e status social, eu perdi minha mãe nos seus 23 anos, deixando órfãos seus 3 filhos. Eu tinha então 2 anos. Aos 5 morre meu pai, de tuberculose causada pelos efeitos de trabalho imerso nas minas de carvão, e excesso de álcool no organismo e dores na alma. Quando ele se descobriu doente nos idos de 1955, quando ainda não havia cura efetiva para tuberculose, providenciou uma família para me adotar, e me entregou pessoalmente ao novo lar, em Porto Alegre, morrendo 2 ou 3 meses depois. Na verdade, o combate à esta doença passou a ser mais eficaz só no final da década de 1970 sob a coordenação do Ministério da Saúde. ​

Esta virada no meu destino foi um divisor de águas quanto ao meu futuro. Aos 10 anos de idade minha mãe adotiva, Lídia Simone de Azambuja, também faleceu, e meu pai adotivo, Manoel Paiva Carvalho de Azambuja, casou-se novamente. Dentro desta tumultuada pertença civil, usei 3 nomes diferentes: nome biológico Irene Pamplona Gnecco, nome de adoção Irene Genecco de Azambuja, nome do primeiro casamento Irene de Azambuja Mattos, este como aparece em minha primeira coletânea de poesias, em 1985 – Quando as folhas caem, edição APAL (Academia Porto-alegrense de Letras) – UNARGS (Universidade Aberta do Rio Grande do Sul). Meu nome literário é Irene Genecco.

Cabe aqui um primeiro adendo ao sobrenome Pamplona, procedente de minha avó paterna, Maria das Mercês Pamplona, de origem espanhola, conhecida na família por Bicota. Soube que a família dos Pamplona entrou no Brasil pelo Nordeste e lá se estabeleceu, como fazendeiros de muito dinheiro, lidando com cana de açúcar e um exército de escravizados. Soube também por outro primo que pesquisava a chegada dos Pamplona no Brasil uma história passada de boca em boca nas gerações. Contam que estes Pamplona foram muito soberbos. Separavam as famílias escravizadas, para evitar planos de fuga, o que aliás era muito comum na época. Veio daí um feitiço muito poderoso feito pelos escravizados: nas próximas 7 gerações os descendentes destes patrões nunca teriam família, pois sofreriam as mesmas dores de separação que os escravizados sofreram. Qualquer semelhança não parece mera coincidência, diante de alguns fatos da vida.

Nunca pensei que se pudesse amar alguém apenas pelos rastros e sombras de sua história. Foi o que me aconteceu. Aprendi a amar minha avó Bicota, do mais profundo do meu coração, sem nunca a ter visto, a partir de narrativas de um primo irmão paterno, Luiz Gnecco, também neto dela e que junto a ela se criou. Quando encontrei este primo, já adulta, nas buscas de minhas raízes, ela já havia partido, há bons anos. Posteriormente eu, já divorciada, e este primo viemos a nos apaixonar, casamos e vivemos juntos 14 anos.  Sua incansável e infindável narrativa de sua própria infância junto à vó Bicota me nutria de pertença. Eu, salpicada dos respingos culturais de então, nos primeiros anos de vida já pensava e sentia na minha pele a ideia de que pai e mãe “verdadeiros” só de sangue. Isto me selava uma orfandade incurável. Meus pais adotivos meio que escondiam minha condição de adotada, para preservar-me de preconceitos. Mas ser adotada me cheirava a ‘coisa ruim’. E por isto eles deveriam estar escondendo. Quando conheci meu primo, foi um resgate de uma pertença livre e nobre. Nossa paixão recíproca era forjada em laços de saudade, a dele do vivido, a minha do imaginado.

Voltando a lembranças resgatadas do meu pai biológico, ele fugira de casa aos 15 anos, por muito apanhar do seu pai, nosso avô de apelido Jango. Neste tempo era comum a educação, principalmente a dos meninos, ser efetuada com relho. E se batia no rosto, ou onde quer que a mão furiosa alcançasse. A última surra que ele suportou deixou lanhos em suas costas, e precisou colocar sal para curar as feridas. O motivo era que ele tinha pegado dinheiro de um copo dentro do armário da cozinha, e fora jogar, já não sendo a primeira vez. Esta foi a última vez. Maneca sumiu. Soube também, de relatos orais de geração a geração, que o avô do meu avô Jango era uma pessoa muito íntegra. Contava-se que a filha namorava um rapaz e engravidou. O rapaz quando soube, negou-se a assumir e disse que ia embora. Pela madrugada sua filha se vestiu de homem, montou num cavalo veloz e foi estrada afora atrás do rapaz. Quando o encontrou, já pronto para fugir, o matou com um tiro, e voltou para casa. No dia seguinte o pai foi à polícia e se entregou como autor do crime. Ficou alguns anos preso.

As lágrimas da vó Bicota enchiam o doloroso buraco em seu coração, corroído pela fuga do filho, do qual alguns anos se passaram sem notícias. Maneca Catarina (apelido do meu pai que vim a saber muitos anos depois, quando encontrei Luiz) voltou a Florianópolis aos 24 anos para servir o exército, aplacando um pouco as dores da mãe, porém terminado o prazo de serviço militar, sumiu novamente. Pedalando em sua máquina de costura, em turvadas tardes de chuva, debulhava fotos do filho sumido, do bauzinho de recordações. Este neto foi seu fiel escudeiro, e destas lembranças ele também se alimentava de pertença.

Outro adendo cabe sobre minha mãe, Elci Azeredo. Era filha mais velha e única mulher, no trio de 3 filhos. Já adolescente, teve sua vida desviada para outros pagos, de Montenegro para Butiá. Acompanhou sua mãe, minha vó Benvinda Isa de Azeredo, que fugiu com o cunhado, para outras paragens do Rio Grande do Sul (Minas do Butiá), levando também junto seu bebê que ainda amamentava. Minha mãe sofria de cegueira progressiva, desde tenra idade. Mesmo tateando em sombras, ajudava no balcão, em sua nova vida, num boteco do tio, onde vieram a se estabelecer. O “véio Tané”, novo marido de Benvinda, era famoso por suas bebedeiras contínuas, e seu mau humor. No vai e vem da rotina de um boteco, se encontraram, os que viriam a ser minha mãe e meu pai. Fugiram para uma noite de amor, e na volta o véio Tané pôs uma faca no pescoço do Maneca Catarina, fazendo-o decidir entre casar ou morrer. Casou.

Fico matutando, por vezes, como seria o meu avô João Pereira, que foi escanteado e trocado por minha avó Benvinda, pelo seu irmão Tané?  Sendo ele aquele traste, o que seria então meu avô? Tive notícias posteriores em meio às muitas informações que fui arrecadando ao longo do tempo, que ele ficou louco, foi encontrado nu andarilhando pelas ruas de Montenegro. Algo que ressalta nisto tudo, é que encontrei sempre presente nos relatos obtidos uma bebedeira constante, arrasadora, entre os personagens masculinos. Beber até cair era simples como tomar uma limonada.

Aos 23 anos, já com três filhos, minha mãe Elci morreu, de morte súbita. Ou melhor, fazendo um parêntese, a causa real de sua morte foi algo bastante trágico. Meu pai antes de casar-se com ela vivia com outra mulher com a qual tinha 3 filhos, já. O mais novo deste enlace anterior, aos 10 anos, colocou veneno no café da minha mãe, sua madrasta. Soube que seu ódio era descomunal, e imagino que por certo tinha minha mãe como causadora do desmantelamento do casal.  Disto tudo aqui relatado, fui sabendo, depois de adulta, a partir dos 23 anos, quando decidi desentranhar minhas origens. Antes, porém, aos meus 13 anos, descobri uma fotinho de uma menina, escondida no guarda-roupas de meus pais adotivos, com uma dedicatória “para minha maninha com carinho”. Meu Deus!!!! Eu tenho uma irmã... Iracema Genecco. Foi quando nos conhecemos e passamos a ter contato por carta, do colégio de freiras onde ela morava. Soube depois que tinha um irmão também, Irineu Genecco, o qual encontrei aos 23 anos, e nunca mais deixamos de manter contato.

Com relação à família de minha mãe Elci, encontrei depois de adulta dois tios meus, seus irmãos, que haviam sido deixados com o pai, quando da fuga de minha avó Benvinda com o cunhado. Não lembro seus nomes, pois os encontrei apenas uma vez, em busca de minha família biológica. Já lá se vão uns trinta anos. Através destes tios, tive alguns rabiscos de imagens da minha mãe na adolescência, descritas pela memória deles, no tempo em que ainda conviviam, na adolescência. Rabiscos que se configuraram luzes no meu lado psicológico bem prejudicado, pela gangorra emocional que constituía minha vida. Antes disto, a única referência concreta que eu tinha dela se reduzia a uma certidão de óbito. Depois destes relatos, algo em mim ficou um pouco mais concreto. A impressão que tenho é que eu me sentia um tanto anônima, tinha uns cortes na minha linha do tempo da chegada a este planeta. Reticências, algumas preenchidas durante minhas buscas. Minha concretude originária se reduzia apenas a um papel, parecia me faltar uma parte no meu corpo etérico. O engraçado é que só fui perceber isto depois que tive informações concretas dela.

Segundo descrição dos meus tios, ela portava cabelos bem longos, até a cintura, e muito bonitos, dos quais muito se orgulhava e cuidava, Era alegre, companheira e gostava de escrever. Da infância à adolescência, só enxergava vultos, doença em contínua progressão, e se movia de vagar, segurando-se nos muros e paredes. Andava por toda a parte, não se aborrecia com sua condição. Nada guardo de sua fisionomia, pois tinha apenas 2 anos, quando ela se foi, e nem uma fotografia restou de sua presença no mundo. Nesse tempo não existia ainda estas facilidades de fotografar. Soube até que existira uma foto do casamento dela com meu pai, mas que fora estraçalhada pelos enteados. Lembro do dia que acredito ser a sua morte por envenenamento. Eu tinha 2 anos e nove meses. Alguém me levou até a cama de casal onde ela estava gemendo e agonizando.

Eu subi na cama e vi minhas pernas vestidas com um pijaminha rosa, acessando o colchão. Pela primeira vez vi que eu tinha um corpo, e isto me causou muita admiração.  Fui até a cabeceira e um avião cruzou os céus naquele momento. Não sei por que, mas na minha intuição sinto que deveria ser umas 2 horas da tarde. Eu gritei para ela “mãe, olha o avião! Olha o avião!” Mas ela apenas balbuciava : “Ondeeeee, ondeeee?”

A muitos tratamentos minha mãe submeteu em Porto Alegre, na Santa Casa de Misericórdia, quando solteira (até seus 17 anos). Passava meses lá internada, onde mantinha longas conversas com as freiras, que lhe muniam de leituras, enquanto ainda podia ler. Muito provavelmente isto foi fonte de inspiração para alguns poemas que começou a escrever. Mas devem ter se perdido na ventania de seu destino trágico. De uma vizinha de cerca da casa onde viviam meus pais, colhi muitos relatos autênticos da vida que levavam. Brigavam muito, meu pai bebia e era rude com ela. A vida era extremamente pobre. Mesmo entre sombras e vultos, cada vez mais trêmulos e desbotados (ela estava praticamente cega, já) cuidava dos 3 filhos e da casa, como podia.  Seus enteados, filhos da antiga união de meu pai com outra mulher, a detestavam. Se prontificavam a conduzi-la ao riacho, para que lavasse sua trouxa de roupas, mas depois espalhavam toda a roupa lavada no barro, e saiam correndo, às gargalhadas. Hoje compreendo melhor que tinham suas dores, e não os julgo.​ A vizinha me relatou o dia da morte de minha mãe, detalhando que ela tomara o veneno no café de manhã e sofrera o dia inteiro com dores lancinantes. À noite, levaram ela para o hospital, enrolada numa toalha de mesa, pois nenhuma roupa lhe servia, dado o corpo muito inchado, e ela veio a óbito as 21 horas. Quando voltei para casa, em Porto Alegre, a primeira coisa que fiz foi confirmar a veracidade do relato da vizinha. Peguei a certidão de óbito e lá estava como causa da morte nefrite aguda, hora da morte 21 horas. Daí não foi possível duvidar de nenhuma das palavras da vizinha, já muito adiantada em idade, mas com muita lucidez.

Com relação a raízes mais antigas, meus tios e primos maternos contaram algo sobre nossos ascendentes. Entre quatro ou cinco gerações anteriores, chegaram ao bravo Bento Gonçalves, em seus relatos. Sim, tinha uma negrinha que com ele se deitava, como era mais do que "normal" acontecer. Ela engravidou dele. Antes de partir para outras revoluções, Bento Gonçalves deixou-lhe um dinheiro para que comprasse a liberdade do filho, quando nascesse.  “Não quero que meu filho seja um escravo” é o que contam sobre o acontecido. Nos dez anos da Guerra dos Farrapos (1835-1845) contra o Império, Bento Gonçalves foi o estrategista militar e presidente da República de Piratini, fundada pelos revoltosos. Apesar de aceitar o cargo, nunca foi entusiasta do separatismo do Rio Grande do Sul. (Google – maio 2025). Fiz longas pesquisas em cartórios e Cúrias. Tinha toda a árvore genealógica que consegui sobre pai e mãe documentada, porém um dia me indignei e queimei tudo.

Com relação ao meu pai adotivo, Manoel Paiva Carvalho de Azambuja, tenho algumas lembranças de suas conversas a respeito da sua infância. Também fugiu de casa, aos 15 anos, onde nasceu, em Bagé. Acredito que seus motivos de fuga não fossem muito diferentes do meu pai biológico. E coincidentemente, ambos de nome Manoel. Minha noção, com respeito ao sentimento de pertença nesta família de adoção, nasceu de visitas, em tardes de domingo, com bolinhos de chuva, muita risada, simplicidade e acolhimento, na casa de sua irmã e sobrinhos, reencontrados e reunidos, também, depois de adultos. Tenho doces lembranças de abraços, gestos de carinho, e palavras gramaticalmente erradas, mas decididamente amorosas, que carrego como joias preciosas, ainda hoje. Minha tia Negra, seu marido tio João, e meu tio Viriato são imorredouros no meu coração. 

Com relação à minha mãe adotiva, Lídia Simone, enamorou-se de meu pai adotivo, ainda muito jovem. Desconheço como se encontraram. Porém, meu pai adotivo era caixeiro-viajante. A família dela não aceitava este romance e este enlace, por acreditarem haver muita diferença intelectual e financeira entre eles.  Porém, ela brigou com toda a família e casou-se. Depois de 20 anos casados, sem filhos, me adotaram.  Pelo que lembro, ela era apaixonada por ele. Talvez a condição de viajante acendesse nela o desejo de presença e aconchego, motivo de grande efusividade e alegria, quando ele retornava de viagem.  Porém lembro também de seu perfil na janela, domingos de tarde, futebol no rádio, e uma distância imensurável de sua presença no pequeno apartamento, onde morávamos. Parecia estar mergulhada no passado. Talvez lembrando das dores do desencontro com suas raízes.​

Para complementar minha história familiar (bastante resumida), reporto-me à minha madrasta, Lila Messias. Era viúva há 10 anos. Trabalhava numa loja de porte, em Uruguaiana, onde nascera. Seu primeiro casamento de 10 anos parecia ter sido harmonioso. Viúva, então, dona de si, com seu dinheiro próprio, coisa muito rara, na época, conheceu meu pai adotivo, em uma de suas viagens de trabalho. Ele, há um ano viúvo, premia por uma companheira que me olhasse e cuidasse da casa. principalmente durante sua ausência, em viagem. Ela encantou-se com a proposta de casamento. Tinha então 40 e poucos anos. As promessas dele foram irrecusáveis. Prometia morada e vida de rainha. Porém, claro, promessas humanas dificilmente correspondem a realidades. Ainda mais quando são feitas sob a pressão de necessidades próprias, à sombra de grandes aflições, como era a situação presente do meu pai adotivo. Casaram-se, ela mudou-se para Porto Alegre e deu de cara com uma adolescente de quase 12 anos, revoltada com a vida, carente de família, e desiludida com os acenos do próprio destino. Foi um período muito tumultuado para ambas. Só hoje, há muito pouco tempo, aprendi a ser-lhe um pouco grata, pelo que pode fazer, em meio a suas próprias turbulências e decepções.

Voltando à parte burocrática de meus nomes, cabe ressaltar que meu nome biológico correto seria Gnecco, descendência do padre que veio de Gênova para o Brasil, entrando via Tubarão, Santa Catarina, e posteriormente exercendo suas funções religiosas em Florianópolis nos idos aproximados entre 1840 e 1850. No Arquivo Público de registros de Santa Catarina e na Cúria da Catedral de Florianópolis, podem ser encontrados registros a próprio punho do Padre Giuseppe Gnecco, sobre suas atividades diárias na paróquia. Entre anotações, falava da situação caótica das pessoas moradoras, quanto à desinformação. Pobres, ignorantes, sem instrução nenhuma, as mulheres morriam de parto por tomar chá de ervas das quais não sabiam ser venenosas.  Crianças e parturientes morriam como moscas, todos os dias. Eu li pessoalmente páginas com uma letra lindíssima e muito bem escritas suas descrições de trabalho diário na Paróquia. Com vistas grossas dos dirigentes da igreja católica, na época, (caso contrário nenhum padre se submeteria vir para uma selva, como era conhecido nosso país na época) ele veio para o Brasil já com uma mulher francesa, Magdalena Peixer, com quem, pelo que sei, teve 2 filhos, origem dos Gnecco no Brasil, na região sul, e do meu sobrenome biológico.

Fiz esta pesquisa, ao longo dos anos.​ Claro que o padre não poderia registrar seus filhos, legalizando seus nascimentos na lei civil, pois isto significaria ser banido da igreja. Esta falta de registro oficial me custou a impossibilidade de encaminhar papéis para dupla cidadania italiana, uma vez que os filhos de Magdalena Peixer com o padre tinham registros de nascimento apenas no nome da mãe. (Isto me indignou e me levou a queimar todos os documentos). Mas como era ele quem também fazia todos os procedimentos de cartório, isto se fez menos agressivo e possível, quando seus filhos ficaram adultos e se casaram. O filho que primeiro casou tinha 16 anos, e é desta linhagem a minha descendência. Ele mesmo realizou seu casamento e forneceu-lhe então a certidão, constando desta feita em seu nome o sobrenome Gnecco, garantindo à sua descendência usufruir de seu nome, e levá-lo adiante, nas gerações futuras.​ Soube também que ele abdicou de sua batina, pouco tempo antes de morrer.

No meu processo de adoção, porém – legalizado somente próximo aos 18 anos - houve uma alteração, por erro do cartório, para “Genecco”. Isto incrivelmente também aconteceu com meus irmãos Irineu e Iracema. Foi também neste processo tirado fora o Pamplona, por minha decisão própria, dado à extensão excessiva que resultaria o nome na íntegra. Este foi um direito meu de escolha, devido minha idade já permitir escolhas.​

Recebi da família adotiva muito de minha formação, pessoal e profissional. Dentro desta guarda estudei até o nível médio, recebi formação e educação musical, e uma sólida educação moral e ética. Isto de nada valia para mim, na época. Eu me sentia fora, como uma estranha no ninho. Isto me custava xingamentos tipo “desamorosa” ou mal agradecida, Eu era dominada por uma espécie de hipnotismo voltado a uma trágica condição de desamada, sem valor e esquecida da sorte. Órfã eterna, não só biológica, mas emocionalmente.  Uma revolta indizível, diante de uma orfandade que ia muito além da ausência física dos pais biológicos, fermentava no meu coração. Aparentemente, entretanto, era mansa e calada. Para onde você desejaria ir, se sabia não ter para onde ir? Já desta época, o escape da escrita se fundiu ao meu oxigênio.

Minha madrasta (apesar dos infindáveis e dolorosos perrengues) me estimulou grandemente à leitura, pois ela tinha o hábito de ler. Esteve bem presente quanto ao cumprimento dos meus deveres escolares diários. Formaram-se aí, talvez, somado a um possível dom, as raízes de minha paixão pela leitura, e minha facilidade de me expressar na escrita. Desde o Ginásio – Escola Estadual Pio XII - escrevia alguns poemas, contos e pequenos ensaios de teatro, nas datas comemorativas, na escola.

Já casada, com 26 anos e com três filhos, fiz meu primeiro vestibular na UFRGS, para Biologia, e cursei dois semestres. Tentei troca de cursos para Tradutor e Intérprete, depois Letras, cursando 1 semestre ou 2 de cada. Amei Biologia, mas a considerava tão complexa e exigente de disciplina quanto Medicina, e minha condição de dona de casa e mãe me pedia algo mais simples de cumprir. Mesmo buscando outra formação considerada mais leve, precisei trancar a matrícula, e me afastar da vida acadêmica. 

Concursada, já com mais uma filha, fui chamada e comecei a trabalhar aos  trinta e um anos de idade. Durante os anos de atividade essencialmente burocrática, fruto de um disputado concurso público, sentia-me em dissonância com minha alma de escritora e poeta. Entretanto, mantinha vivo nas veias o gosto por escrever, acirrado no meu breve tempo de imersão acadêmica, notadamente em Literatura, na faculdade de Letras. Ainda que não finalizadas todas, esta visão acadêmica variada me despertou e fortaleceu meu espírito no gosto pelas disciplinas humanas - Filosofia, Sociologia, Antropologia, Psicologia, Educação e Letras.

Tais áreas foram alicerces do meu pensamento, e foram se solidificando na predominância em meu escrever. O transcendental e o metafísico, porém, me atraíram, tornando-se alvo de minha expressão literária. Participei de alguns concursos e coletâneas, neste ínterim, nunca estrangulando de vez minha alma de escritora. Em 1985 fui selecionada para publicar alguns poemas, na antologia “Quando as Folhas Caem”. Foi meu primeiro livro publicado, em coletânea.​

Quando fui morar em Florianópolis, transferida de meu trabalho, reiniciei a faculdade na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, Faculdade de Pedagogia – FAED, onde o sonhado diploma superior me veio depois dos 50 anos. Após me formar, reingressei de imediato na Univali, em Psicologia, onde cursei alguns semestres, e precisei interromper meus estudos. Voltei aos pagos (Porto Alegre) e retomei Psicologia na Uniritter, mas faltando 2  semestres para me formar desisti, pois na época já não via sentido em finalizar, apenas para colecionar diplomas.

Porém nunca parei de estudar. Um dia, numa sessão de psicoterapia, me foi feita a pergunta: “se te perguntassem de que você nunca abriria mão, nem ameaçada de morte, de que você nunca desistiria?” Eu respondi que nunca desistiria de querer aprender. Preferiria morrer a ser privada de aprender.  Seja em conhecimentos acadêmicos, seja no autodidatismo. Transitei, no período de quase 10 anos, no campo das energias e metafísica, nas chamadas terapias alternativas. Tive como base inicial de religiosidade certa frequência à igreja católica, pelo lado de minha madrasta, e por batismo oficial. Porém também fui levada ao espiritismo, religião de meu pai adotivo. Alguns dos meus experimentos e estudos se encontram relatados no meu livro editado em janeiro de 2022, na Agbook – No mundo da ficção, só que não, como autor independente.​

Viajei por um tempo a passeio e a estudos, depois de aposentar-me. Visitei alguns países na Europa. Morei com um namorado americano por um tempo próximo a 1 ano, nos Estados Unidos, cidade de York, no Maine. Neste ínterim, fui surpreendida pela pandemia, quando então fui a Portugal, onde ganhei uma bolsa de estudos, na Universidade para Mestrado em Educação e Formação. Obtive apenas pós-graduação, por impedimentos financeiros de lá completar mais um ano para receber diploma em Mestrado.

Embora não tenha exercido a profissão de professora, a educação se constitui na minha paixão de alma. Eis-me na atualidade em plena atividade literária, e aprendendo espiritualidade universalista, praticando meditações xamânicas, dialogando com mentores angelicais, todos arquétipos de uma ancestralidade da qual verdadeiramente me sinto herdeira, o que me resgata meu estado de finalmente me sentir inteira.

 
 
 

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