Em busca dos rastros
- irenegenecco
- 25 de mai.
- 4 min de leitura
Parte II - lado paterno
Nasci em Minas do Butiá, cidade de minas de carvão, bem próxima a Porto Alegre. De família biológica carente, com referência a nível financeiro e status social, eu perdi minha mãe nos seus 23 anos, deixando órfãos seus 3 filhos. Eu tinha então 2 anos. Aos 5 morre meu pai, de tuberculose causada pelos efeitos de trabalho imerso nas minas de carvão, e excesso de álcool no organismo e dores na alma. Quando ele se descobriu doente nos idos de 1955, quando ainda não havia cura efetiva para tuberculose, providenciou uma família para me adotar, e me entregou pessoalmente ao novo lar, em Porto Alegre, morrendo 2 ou 3 meses depois. Na verdade, o combate à esta doença passou a ser mais eficaz só no final da década de 1970 sob a coordenação do Ministério da Saúde.
Esta virada no meu destino foi um divisor de águas quanto ao meu futuro. Aos 10 anos de idade minha mãe adotiva, Lídia Simone de Azambuja, também faleceu, e meu pai adotivo, Manoel Paiva Carvalho de Azambuja, casou-se novamente. Dentro desta tumultuada pertença civil, usei 3 nomes diferentes: nome biológico Irene Pamplona Gnecco, nome de adoção Irene Genecco de Azambuja, nome do primeiro casamento Irene de Azambuja Mattos, este como aparece em minha primeira coletânea de poesias, em 1985 – Quando as folhas caem, edição APAL (Academia Porto-alegrense de Letras) – UNARGS (Universidade Aberta do Rio Grande do Sul). Meu nome literário é Irene Genecco.
Cabe aqui um primeiro adendo ao sobrenome Pamplona, procedente de minha avó paterna, Maria das Mercês Pamplona, de origem espanhola, conhecida na família por Bicota. Soube que a família dos Pamplona entrou no Brasil pelo Nordeste e lá se estabeleceu, como fazendeiros de muito dinheiro, lidando com cana de açúcar e um exército de escravizados. Soube também por outro primo que pesquisava a chegada dos Pamplona no Brasil uma história passada de boca em boca nas gerações. Contam que estes Pamplona foram muito soberbos. Separavam as famílias escravizadas, para evitar planos de fuga, o que aliás era muito comum na época. Veio daí um feitiço muito poderoso feito pelos escravizados: nas próximas 7 gerações os descendentes destes patrões nunca teriam família, pois sofreriam as mesmas dores de separação que os escravizados sofreram. Qualquer semelhança não parece mera coincidência, diante de alguns fatos da vida.
Nunca pensei que se pudesse amar alguém apenas pelos rastros e sombras de sua história. Foi o que me aconteceu. Aprendi a amar minha avó Bicota, do mais profundo do meu coração, sem nunca a ter visto, a partir de narrativas de um primo irmão paterno, Luiz Gnecco, também neto dela e que junto a ela se criou. Quando encontrei este primo, já adulta, nas buscas de minhas raízes, ela já havia partido, há bons anos. Posteriormente eu, já divorciada, e este primo viemos a nos apaixonar, casamos e vivemos juntos 14 anos. Sua incansável e infindável narrativa de sua própria infância junto à vó Bicota me nutria de pertença. Eu, salpicada dos respingos culturais de então, nos primeiros anos de vida já pensava e sentia na minha pele a ideia de que pai e mãe “verdadeiros” só de sangue. Isto me selava uma orfandade incurável. Meus pais adotivos meio que escondiam minha condição de adotada, para preservar-me de preconceitos. Mas ser adotada me cheirava a ‘coisa ruim’. E por isto eles deveriam estar escondendo. Quando conheci meu primo, foi um resgate de uma pertença livre e nobre. Nossa paixão recíproca era forjada em laços de saudade, a dele do vivido, a minha do imaginado.
Voltando a lembranças resgatadas do meu pai biológico, ele fugira de casa aos 15 anos, por muito apanhar do seu pai, nosso avô de apelido Jango. Neste tempo era comum a educação, principalmente a dos meninos, ser efetuada com relho. E se batia no rosto, ou onde quer que a mão furiosa alcançasse. A última surra que ele suportou deixou lanhos em suas costas, e precisou colocar sal para curar as feridas. O motivo era que ele tinha pegado dinheiro de um copo dentro do armário da cozinha, e fora jogar, já não sendo a primeira vez. Esta foi a última vez. Maneca sumiu. Soube também, de relatos orais de geração a geração, que o avô do meu avô Jango era uma pessoa muito íntegra. Contava-se que a filha namorava um rapaz e engravidou. O rapaz quando soube, negou-se a assumir e disse que ia embora. Pela madrugada sua filha se vestiu de homem, montou num cavalo veloz e foi estrada afora atrás do rapaz. Quando o encontrou, já pronto para fugir, o matou com um tiro, e voltou para casa. No dia seguinte o pai foi à polícia e se entregou como autor do crime. Ficou alguns anos preso.
As lágrimas da vó Bicota enchiam o doloroso buraco em seu coração, corroído pela fuga do filho, do qual alguns anos se passaram sem notícias. Maneca Catarina (apelido do meu pai que vim a saber muitos anos depois, quando encontrei Luiz) voltou a Florianópolis aos 24 anos para servir o exército, aplacando um pouco as dores da mãe, porém terminado o prazo de serviço militar, sumiu novamente. Pedalando em sua máquina de costura, em turvadas tardes de chuva, debulhava fotos do filho sumido, do bauzinho de recordações. Este neto foi seu fiel escudeiro, e destas lembranças ele também se alimentava de pertença.
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