A vida virou sexta-feira. Só existe sexta-feira! Mal dá tempo de perguntar que dia é hoje. Neste rodar insano dos dias, me enleio nos caminhos de uma mente serpenteada e me perco. Serpenteado me lembra serpente, tentação, maçã irresistível. Penso na Branca de Neve. Condoída com uma pobre vendedora de maçãs, se lascou. Hoje é maçã transgênica que adormece desta feita a alma, e não mais o corpo. Deste é preciso extrair a força que move o mercado, que move o globo, que move a insensatez que a tudo move.
O corpo não pensa, ele obedece, é preciso entontecer a alma. Sonambulando em pleno dia, vou engolindo drágeas de insensibilidade. São tantas e tão rápidas as voltas do ponteiro do relógio, que tropeço, embriagada de esperanças vãs. Viro a chave do cofre de memórias, que caem todinhas, a cada dia, como frutos ainda verdes, derrubados pelo vendaval na troca de estação. Não sei como, nem de onde tornam a nascer. Na caixinha de memórias, eis-me na estação, esperando o trem, e o trem passa e não vejo.
Meu dia abre às 5, na primavera e no verão. No outono e no inverno, abre às 7. Sou sazonal, acordo com o clarão do dia. Meu comércio de esperanças é pontual, sobe as cortinas de aço cedo, pra vender respostas prontas. Ou comprar, pra revender. Ninguém quer saber de onde elas vêm, quem as semeou, muito menos quem as colheu. Vivemos de respostas. Tem dias que acordo azeda. As portas dos meus olhos se recusam a abrir. Pra quê? É a pergunta que se repete, como o alarme do celular, quando esqueço de desligar. Porém, com o amargor intermitente já aprendi que a leveza da alma precisa cultivo, não nasce do nada. Também precisa ser regada, e cercada contra ervas daninhas e larvas. É preciso fazer um esforço para abrir os olhos, pular da cama, desnudar a consciência para o sol da vida, em seu movimento. Para que o dia não se perca em mazelas, queixas, lamúrias e muita raiva.
A raiva ainda é sinal de vida. Pior é a indiferença, um qualquer-coisa, um deixar-pra-lá, e assumir o boneco de pano como identidade. Inúmeras vezes fui puxada cama a fora pela doçura do mamão que me esperava na geladeira. Sim, uma fruta ressuscita. Uma flor, um pássaro, um sorriso, um batom, um banho. Porque a vida fala do amor, sempre. E o amor ressuscita, e flui garganta abaixo. Destrava, desperta de um engasgo de cem anos! Vou pro banho às vezes de manhã, outras de noite, e outras ainda, duas vezes.
Quando acontece de me conectar com a água, com o perfume do sabonete, com a delicadeza da mão que desliza na espuma, minha pele me vivifica numa intimidade desnuda comigo mesma. A verdade me escancara: que privilégio este banho! Mas o tempo, este feitor que nos comanda sob grilhões, reduz tudo a repetição e sou sugada pelo automatismo. Meu banho, como os restos do meu dia, vira rotina. Me esqueço de me conectar na tomada do agora. Acho que o esquecer é analgésico para uma dor que sequer sabemos de onde vem. Todo o meu tormento é ontem e todo o meu medo é amanhã. O agora é limpo, leve e livre. Mas líquido, escorre ralo abaixo no box de azulejos salpicados de espuma e de gotas do meu corpo.
Acho que rotina é uma rodinha que gira sem parar, dentro do cérebro. Talvez seja um chip alienígena, inserido na pele, enquanto dormimos. Damos o start não sei como, onde, nem por quê. Nem sei bem se sou eu mesma a girar a ignição. Acho que rotina é um assassinato do belo, cometido por acaso, no espanto da primeira vez. Depois será sempre e apenas 'outra vez’. Embalsamado. Uma múmia. Isto! O corpo da alma, toda atada, braços, pernas, mãos e pés. A rotina não para nunca mais, absoluta mente repetitiva, mortal.
Um dia eu voltava do trabalho. Minha caçulinha de 2 anos me esperava no portão, no alto da rua. Disparou ladeira abaixo, pela calçada, com os bracinhos abertos, para me saudar. Me abaixei e a engoli nos meus braços. Esta rotina poderia repetir mil anos e eu me embeveceria sempre, como a primeira vez. Descobri que a rotina não é a vilã, mas sim a matéria morta de que se nutre.
O mundo é um pipocar de informações inúteis e eu a decifrar me afogo num mar reflexivo de neurônios escravizados, condicionados na busca de sentido, mesmo que sem tido algum. Com o tido do outro, nada tenho de meu. A não ser o ego escamoteado e vilipendiado de um saber tudo-sobre-nada. Este é meu, ainda que descarada mente plagiado de uma alienada mente coletiva. Falo de um ego fabricado, tricotado fio a fio, dia a dia por um sistema antropofágico. É preciso transcender, murmuro em pensamento. Ainda que nem sempre, às vezes, num rasgo de uma alma que desperta, me descubro nua. Vergonha alheia, me escondo na fumaça da água quente.
Diz a lei da inércia que um corpo em repouso ou em movimento só altera sua condição pela atuação de uma força sobre eles. Acho que em mim esta força é vontade. Mas de quem? De onde vem minha vontade? Quem a fecunda para que cresça e se impulsione em ação? Minha vontade é terceirizada. Vivo uma hipnose, a nova forma contemporânea de adormecer brancas-de-neve.
Mais xampu ou mais condicionador? Nem no banho me liberto de ser condicionada. Mas... há sempre um mas que nos retorna à condição de Sapiens. Há algo em mim que tudo isto percebe, mesmo que envolto em fumaça, num caldeirão fervente de ideias e conceitos alheios ao meu alcance. É este perceber que me esperança. Um saber intuitivo, que brota das entranhas, dizendo vai, isto passa! Talvez as drágeas de indiferença já não estejam fazendo efeito. Por outro lado, vivi o bastante para entender que existe uma vontade que me leva para o abismo, e uma vontade que me ergue do lamaçal. Não podem provir da mesma fonte. Um enigma.
Algumas vezes, me esqueço se afinal enxaguei o amaciante do cabelo. Sim, amaciante. Porque cabelo, pele e roupa viram sinônimos, no anonimato de uma manhã qualquer. Fico com raiva de mim mesma de perder a vida real, mergulhada sempre em pensamentos vazios. Mas afinal, vazios de quê? Não sei, as palavras são traiçoeiras. Vazio é um lugar em lugar nenhum. Um alguém perpassado de ninguém. A ausência é a presença do nada! Qualquer explicação basta ao meu cérebro faminto de definições. Sou movida a rótulos. Presença oculta, plenitude imaginada. Pode? Como uma sombra de algo que não é. Efeito sem causa. Tudo fruto da imaginação. Ou seja, ação em imagem, apenas.
Alguns dizem que coisa nenhuma é. Tudo é um eterno vir a ser. Isto mata o agora e o transforma num eterno inalcançável. Nem as pedras, se pensar pudessem, ao nosso modo, nem as pedras, oh, soberbice infame, afirmariam isto! O sabor - o sal do mundo - está no inusitado, no inesperado, na primeira vez irrevogável de descobrir-se alguém vivo, de eternidade em eternidade. A eternidade é o bem mais precioso, mesmo que distribuída em infinitas manifestações. A vida é poderosa suficiente para nunca se repetir.
Quando vejo, estou espalhando o creme no seco da pele em meus @ e poucos anos, que breve serão @ e tantos, e como minúsculas gotas tragadas pela terra seca, se some nos poros famintos de juventude. O banho acaba, o prato se esvazia, a terra fecha seu ciclo, o dia termina e não vejo nada disto, ocupada em pensar, para encontrar saída do labirinto, na pele de um Teseu sem tesão nenhuma. Ufa! É hora de fechar portas e janelas, e de escurecer a casa pra dormir. Minha lucidez desperta apenas quando o burburinho cessa e tudo se fecha.
Poderia tecer um manto de fios de cabelos caídos pela casa. Guardo para fazer uma almofada para descansar a cabeça. Não suporto vê-los sobre o chão, nos ladrilhos brancos do banheiro. E nua, de quatro, como domesticado e conformado animal, fico juntando fios cheios de pó. Ai, pó! Nunca acaba. Dizem que viramos pó quando morremos. Já somos. De joelhos, umedeço os dedos com saliva e grudo, fio a fio, entre o indicador e o polegar, os fios de cabelos caídos ao léu. A história da almofada é mentira. Jogo tudo no vaso sanitário e dou descarga.
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