FAED - UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina 2004 - agosto - turma de formandos em Pedagogia
Eu de blusinha listrada
Eu apresentando um trabalho de Bourdieu em aula de Sociologia
Fiz uma viagem com os colegas de Faculdade, quando nos formamos, em 2004 .
Juntamos dinheiro os 4 anos de percurso acadêmico para irmos a Salvador, saindo de Florianópolis – de ônibus, porque a poupança não foi muito rentável – 3 mil quilômetros!!!! = 1864,114 milhas!!!! E fomos! Foi uma aventura inesquecível! Levamos acho que 3 dias na estrada.
O ônibus estragou no meio do caminho. Ficamos horas esperando na estrada pelo guincho, e pela chegada de outro ônibus para prosseguirmos nossa viagem. Como faz quase 20 anos nem lembro mais em que pedaço da estrada estragou. Foi muita piada, muita risada e muita festa.
Lá chegando fomos direto a uma escola pública, já em reserva para nossa estadia grátis. Cada uma levou seu colchonete e cobertor, e para comer cada uma ia se virar ao redor. Não tinha nada perto, a não ser para o café da manhã. A escola ficava um pouco afastada do centro, mas as instalações da escola eram grandes, tudo de alvenaria e com mais de um andar além do térreo. Tinha banheiros e banho.
Se posso dizer que algo ficou inesquecível, foi o centro histórico, e mais ainda impactante foi o desfile da banda Olodum, subindo a ladeira no Centro Histórico, coisa que fazem diariamente. O ritmo é algo verdadeiramente irresistível, se apodera do teu sangue e tu te junta ao grupo e sai requebrando e absorvendo aquele clima mágico de batucada ritmada que te envolve todinha ou todinho, sem acanhamento nenhum.
As ladeiras do centro histórico saem quase todas no pico da subida – o Pelourinho. Largo de uma praça onde ainda se encontra, como amarga lembrança, o tronco onde eram açoitados os escravizados no período colonial. Período este dado numa índole de donos de muitas terras, de muito poder, intuindo-se equivocadamente disto o direito de ditar quem pode e quem não pode ser livre. O clima que ali paira nos move para um passado que deveria ser um alerta para não cometermos os mesmos erros.
As pedras desgastadas, muitas do tempo da escravidão, ainda, nos sugerem o quanto foram percorridas por todos os tipos de pés, pois afinal, todos são iguais em macerar os caminhos, e deixar rastros, nem sempre dignos de serem seguidos.
Ali naquelas íngremes subidas eu sentia como que adentrando por meus pés uma vibração pesada daqueles paralelepípedos lustrosos e escorregadios, como ecos do passado, dos que pisaram com pés de agonia e aflição, privados de suas dignidades e natureza humana. Porque quem açoita também tem sua agonia. Olhando para o chão e para meus pés, me pergunto se serei rastro destas gerações. Posso quase lhes escutar os passos, as risadas, os deboches, os açoites, os gemidos e os cânticos sanadores de seus antepassados, que agora são meus, em sensações.
Por outro lado, os rostos simples e alegres do povo me fazem adormecer estes sentimentos pesados, na leveza de generosidade, no acolhimento do peregrino, e numa extrema humildade de ser estampada no sorriso e no olhar.
É de um colorido exuberante as faixadas das casas, as janelas, as roupas das baianas, fartas em quadril, gerador de muitas vidas, e sorridentes como rainhas de si mesmas. As bancas de Acarajé (quente ou frio, se referindo à intensidade de pimenta) e em cada esquina a abundância de caju, em fruta. No Sul, onde moro, conheço mais a semente torrada, que é uma delícia. Conheço sim o fruto também, mas no sul é bem mais raro, e também mais caro.
Não tem como não viajar no tempo e não verter na pele o clima e o contexto de séculos passados. Seja adentrando nas igrejas de fachadas lisas, de pedra, ou em abundância no estilo barroco,. Absorver-se nos altares e nichos com seus santos de gesso, esculpidos em madeira ou pintados em imagens, favorece muito a divagação sobre conceitos de santidade.
Fazendo aqui um adendo, percebo em alguns santos uma expressão de súplica, um olhar de agonia ou até de terror. Não só lá em Salvador, mas em todas as igrejas antigas, que carregam em si um arcabouço histórico e cultural muito forte. Este sentimento sobre os santos me incita a repensar minha crença de aprisioná-los em ícones, como se meu fosse um direito de transfigurá-los em servir-me como modelos de dor. Condeno todos os santos à eterna comiseração, como se isto bastasse para me isentar de responsabilidades próprias pela minha vida. O assombro no olhar dos santos aprisionados em seus nichos, muito mais explícito do que a piedade, é um convite a reconstruir meu olhar do passado. Talvez eu possa de fato representar uma nova geração, e deixar novos traços de consciência, menos dor como passaporte de salvação de minha alma. Talvez isto signifique menos julgamentos e condenações do outro, e menos culpas sobre meus ombros. Soube, um tempo depois disto, em um breve estudo sobre as artes, que tudo na Arte Antiga era mais pesado e lúgubre (como a atmosfera da Idade Média no geral), principalmente na pintura, e que isto foi drasticamente mudado no Renascimento, na Itália, principalmente com Raphael Sanzio, que pintou a Virgem Maria com doçura nos traços, ficando conhecido, admirado e copiado por esta suavidade na sua obra.
Voltando ao nosso passeio, achei delicioso bisbilhotar nas barracas de múltiplas miudezas, observar as entradas estreitas de portas de duas folhas, a atmosfera de armazéns antigos, ainda parcamente lembrados da minha infância. Cheirei ervas, manuseei apetrechos de rituais, e lembrei de benzedeiras, pais e mães de santo, caboclos e pretos velhos, nas minhas raízes de sincretismo religioso, tão comuns no Brasil. Ia me esvaziando da sisudez cotidiana da vida urbana.
Respirava um ar mítico de terra de candomblé e danças ao som de um ritmado clima de outras dimensões, me fundindo a este caldo cultural que é o meu país. Da fervura neste caldo brota-me certamente um ser mais limpo de preconceitos. Nestes giros pelos arredores, ressalta também a índole do povo hospitaleiro, que acompanha quatro, cinco ou mais quadras, do ladinho do turista confuso, entre ruelas e lombas íngremes, como se há muitas eras o conhecesse - como se vizinhos de cerca fossem. Tudo para apenas assegurar o visitante de que estará guiado e não se perderá do endereço procurado.
O Bondinho à esquerda e o Elevador Lacerda à direita
Salvador tem a cidade em dois planos, um baixo e outro alto - onde se acessa o Pelourinho, no Centro Histórico . Para acessar a parte alta pode se fazer subindo uma longa escadaria, ou calçada íngreme. Também pode ser pelo Elevador Lacerda, ou ainda pelo bondinho.
Fomos passear na Praia do Forte, num município cerca de 80 km de Salvador. Praia linda, água limpa, verde e ensolarada. Eu pareço ter feito o farol de meu chapéu. 😂😍 No dia que fomos estava um pouco ventoso.
Parte baixa do Centro Histórico, Ano que vem completa 20 anos deste passeio, nesta cidade linda, que transpira história e nos faz viajar no tempo.
Algo que acho interessante me ficou de lembrança e objeto de reflexões. Foi um passeio de ônibus que fiz sozinha, da escola onde estávamos acampados para ir ao Shopping. Pude sentir, ainda que fugidiamente, um pouco da sensação de desconforto que imagino, quanto ao racismo que as pessoas negras sofrem. Porque sentei no banco bem detrás no ônibus, e podia ver todos os passageiros. Por estarem todos sentados, e não haver ninguém de pé, eu podia observar tudo. A única pessoa branca ali era eu. Senti algo que não sei explicar. Como se eu fosse um invasor, como se estivesse ali "sobrando", como se fosse um bicho raro. Tive vontade de me esconder debaixo do banco, ou descer na próxima parada, só não o fiz por medo de me perder. Nunca tinha vivido isto. Muito provável as pessoas negras sintam algo parecido, quando vão a lugares onde se sentem únicos no meio de um povo branco. Talvez comece por aí a construção do racismo estrutural, por vivemos numa estrutura de nichos (um tanto semelhantes aos santos), constituídos de cor, gênero e raça, e ainda tantos outros diferenciais segregadores. Se pensarmos um pouco mais sobre isto, descobriremos que para todos os rótulos possíveis e imaginados - se existissem- a categoria seria unicamente HUMANA.
Também, ao longo dos dias que visitei Salvador, pude observar, andando em meio ao povo, em lugares comuns, que as pessoas de cor negra são a grande maioria da população. Bem diferente do sul, onde nasci e vivo. Não é que aqui tenha menos pessoas de cor preta, (não o sei em números oficiais) mas porque maior ainda são os preconceitos dissimulados. Aqui, andando por lugares públicos, vejo bem menos pessoas de cor preta, mas sei que isto se dá pela constituição mais segregadora ainda de vilas e bairros pobres.
Em Salvador praticamente não os via nas lojas , nos grandes shoppings, ou em restaurantes de porte, senão como serventes, mas os via abundantemente pelas ruas e bairros de trânsito comum. Também me chama a atenção que tais fatos se dão com clareza agora, que estou a organizar meus pensamentos e sentimentos, quanto a esta viagem. Não fui a Salvador, e muito menos andei pelas suas ruas com o prévio intuito de medir quantidades de pessoas brancas ou pretas. Isto esbarrava em mim a todo o instante e onde quer que eu fosse. O fato veio a mim, e se impôs, não eu ao fato.
Também, de 20 anos para cá, muita coisa está mudando, com relação a preconceitos, que estão sendo postos na cara, impossível de ignorar. Quem sabe se eu tivesse feito este texto lá na época, 2004 ainda não tivesse esta perspectiva tão evidente de racismo, nem lá, nem aqui, onde vivo.
Verdade é que a situação global de arrocho econômico está transformando as ruas das capitais quase em dormitórios dos sem teto e sem emprego. No mundo todo, as imigrações e migrações estão em ebulição, em busca de sobrevivência. Acho que pelo simples fato de ter observado isto e disto esteja me apropriando é um bom indício de conscientização desta praga chamada preconceito. Quando percebemos que podemos mudar nosso modo de ver e de pensar, novos horizontes se abrem para todos.
Outra coisa interessante que observei no meu trajeto em ônibus pela parte metropolitana de Salvador, foi que a grande maioria dos prédios não é finalizada. Ficam os tijolos expostos, envelhecidos, carcomidos, cheios de bolor, sem reboco e sem pintura, aparentando algo que gostaria de estar morto, mas que é obrigado por circunstâncias alheias a si mesmo, a permanecerem de pé. Ressalto que isto foi há quase 20 anos atrás, não sei como está hoje. Esta visão, através da janela de um veículo rodando, dá um certo aspecto sombrio, uma sensação de desleixo, junto a um sentimento de opressão. Soube um tempo depois que a razão disto é que os proprietários não pagam impostos enquanto não finalizam as construções. Daí entendi.
Termino de compartilhar esta linda viagem, deixando aqui o link da Banda Olodum, para sentirem o gostinho batucando no coração.
Que recordação maravilhosa!