O lutador e a cativa
- irenegenecco
- 25 de mai.
- 5 min de leitura
Parte III - ancestralidade materna
Outro adendo cabe sobre minha mãe, Elci Azeredo. Era filha mais velha e única mulher, no trio de 3 filhos. Já adolescente, teve sua vida desviada para outros pagos, de Montenegro para Butiá. Acompanhou sua mãe, minha vó Benvinda Isa de Azeredo, que fugiu com o cunhado, para outras paragens do Rio Grande do Sul (Minas do Butiá), levando também junto seu bebê que ainda amamentava. Minha mãe sofria de cegueira progressiva, desde tenra idade. Mesmo tateando em sombras, ajudava no balcão, em sua nova vida, num boteco do tio, onde vieram a se estabelecer. O “véio Tané”, novo marido de Benvinda, era famoso por suas bebedeiras contínuas, e seu mau humor. No vai e vem da rotina de um boteco, se encontraram, os que viriam a ser minha mãe e meu pai. Fugiram para uma noite de amor, e na volta o véio Tané pôs uma faca no pescoço do Maneca Catarina, fazendo-o decidir entre casar ou morrer. Casou.
Fico matutando, por vezes, como seria o meu avô João Pereira, que foi escanteado e trocado por minha avó Benvinda, pelo seu irmão Tané? Sendo ele aquele traste, o que seria então meu avô? Tive notícias posteriores em meio às muitas informações que fui arrecadando ao longo do tempo, que ele ficou louco, foi encontrado nu andarilhando pelas ruas de Montenegro. Algo que ressalta nisto tudo, é que encontrei sempre presente nos relatos obtidos uma bebedeira constante, arrasadora, entre os personagens masculinos. Beber até cair era simples como tomar uma limonada.
Aos 23 anos, já com três filhos, minha mãe Elci morreu, de morte súbita. Ou melhor, fazendo um parêntese, a causa real de sua morte foi algo bastante trágico. Meu pai antes de casar-se com ela vivia com outra mulher com a qual tinha 3 filhos, já. O mais novo deste enlace anterior, aos 10 anos, colocou veneno no café da minha mãe, sua madrasta. Soube que seu ódio era descomunal, e imagino que por certo tinha minha mãe como causadora do desmantelamento do casal. Disto tudo aqui relatado, fui sabendo, depois de adulta, a partir dos 23 anos, quando decidi desentranhar minhas origens. Antes, porém, aos meus 13 anos, descobri uma fotinho de uma menina, escondida no guarda-roupas de meus pais adotivos, com uma dedicatória “para minha maninha com carinho”. Meu Deus!!!! Eu tenho uma irmã... Iracema Genecco. Foi quando nos conhecemos e passamos a ter contato por carta, do colégio de freiras onde ela morava. Soube depois que tinha um irmão também, Irineu Genecco, o qual encontrei aos 23 anos, e nunca mais deixamos de manter contato.
Com relação à família de minha mãe Elci, encontrei depois de adulta dois tios meus, seus irmãos, que haviam sido deixados com o pai, quando da fuga de minha avó Benvinda com o cunhado. Não lembro seus nomes, pois os encontrei apenas uma vez, em busca de minha família biológica. Já lá se vão uns trinta anos. Através destes tios, tive alguns rabiscos de imagens da minha mãe na adolescência, descritas pela memória deles, no tempo em que ainda conviviam, na adolescência. Rabiscos que se configuraram luzes no meu lado psicológico bem prejudicado, pela gangorra emocional que constituía minha vida. Antes disto, a única referência concreta que eu tinha dela se reduzia a uma certidão de óbito. Depois destes relatos, algo em mim ficou um pouco mais concreto. A impressão que tenho é que eu me sentia um tanto anônima, tinha uns cortes na minha linha do tempo da chegada a este planeta. Reticências, algumas preenchidas durante minhas buscas. Minha concretude originária se reduzia apenas a um papel, parecia me faltar uma parte no meu corpo etérico. O engraçado é que só fui perceber isto depois que tive informações concretas dela.
Segundo descrição dos meus tios, ela portava cabelos bem longos, até a cintura, e muito bonitos, dos quais muito se orgulhava e cuidava, Era alegre, companheira e gostava de escrever. Da infância à adolescência, só enxergava vultos, doença em contínua progressão, e se movia de vagar, segurando-se nos muros e paredes. Andava por toda a parte, não se aborrecia com sua condição. Nada guardo de sua fisionomia, pois tinha apenas 2 anos, quando ela se foi, e nem uma fotografia restou de sua presença no mundo. Nesse tempo não existia ainda estas facilidades de fotografar. Soube até que existira uma foto do casamento dela com meu pai, mas que fora estraçalhada pelos enteados. Lembro do dia que acredito ser a sua morte por envenenamento. Eu tinha 2 anos e nove meses. Alguém me levou até a cama de casal onde ela estava gemendo e agonizando.
Eu subi na cama e vi minhas pernas vestidas com um pijaminha rosa, acessando o colchão. Pela primeira vez vi que eu tinha um corpo, e isto me causou muita admiração. Fui até a cabeceira e um avião cruzou os céus naquele momento. Não sei por que, mas na minha intuição sinto que deveria ser umas 2 horas da tarde. Eu gritei para ela “mãe, olha o avião! Olha o avião!” Mas ela apenas balbuciava : “Ondeeeee, ondeeee?”
A muitos tratamentos minha mãe submeteu em Porto Alegre, na Santa Casa de Misericórdia, quando solteira (até seus 17 anos). Passava meses lá internada, onde mantinha longas conversas com as freiras, que lhe muniam de leituras, enquanto ainda podia ler. Muito provavelmente isto foi fonte de inspiração para alguns poemas que começou a escrever. Mas devem ter se perdido na ventania de seu destino trágico. De uma vizinha de cerca da casa onde viviam meus pais, colhi muitos relatos autênticos da vida que levavam. Brigavam muito, meu pai bebia e era rude com ela. A vida era extremamente pobre. Mesmo entre sombras e vultos, cada vez mais trêmulos e desbotados (ela estava praticamente cega, já) cuidava dos 3 filhos e da casa, como podia. Seus enteados, filhos da antiga união de meu pai com outra mulher, a detestavam. Se prontificavam a conduzi-la ao riacho, para que lavasse sua trouxa de roupas, mas depois espalhavam toda a roupa lavada no barro, e saiam correndo, às gargalhadas. Hoje compreendo melhor que tinham suas dores, e não os julgo. A vizinha me relatou o dia da morte de minha mãe, detalhando que ela tomara o veneno no café de manhã e sofrera o dia inteiro com dores lancinantes. À noite, levaram ela para o hospital, enrolada numa toalha de mesa, pois nenhuma roupa lhe servia, dado o corpo muito inchado, e ela veio a óbito as 21 horas. Quando voltei para casa, em Porto Alegre, a primeira coisa que fiz foi confirmar a veracidade do relato da vizinha. Peguei a certidão de óbito e lá estava como causa da morte nefrite aguda, hora da morte 21 horas. Daí não foi possível duvidar de nenhuma das palavras da vizinha, já muito adiantada em idade, mas com muita lucidez.
Com relação a raízes mais antigas, meus tios e primos maternos contaram algo sobre nossos ascendentes. Entre quatro ou cinco gerações anteriores, chegaram ao bravo Bento Gonçalves, em seus relatos. Sim, tinha uma negrinha que com ele se deitava, como era mais do que "normal" acontecer. Ela engravidou dele. Antes de partir para outras revoluções, Bento Gonçalves deixou-lhe um dinheiro para que comprasse a liberdade do filho, quando nascesse. “Não quero que meu filho seja um escravo” é o que contam sobre o acontecido. Nos dez anos da Guerra dos Farrapos (1835-1845) contra o Império, Bento Gonçalves foi o estrategista militar e presidente da República de Piratini, fundada pelos revoltosos. Apesar de aceitar o cargo, nunca foi entusiasta do separatismo do Rio Grande do Sul. (Google – maio 2025). Fiz longas pesquisas em cartórios e Cúrias. Tinha toda a árvore genealógica que consegui sobre pai e mãe documentada, porém um dia me indignei e queimei tudo.
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