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Vida além da razão (continuação)

Atualizado: 14 de fev.


Foto de William Bout na Unsplash

O que nos dá unidade e consistência não é o apego, mas o desapego, pois vamos nos constituindo, à medida que fluímos com a vida. Entretanto, confiar e esperar - em outras palavras, fé e esperança - são atitudes necessárias para reverter o medo, a dúvida e a angústia. Garras afiadas nos fixam como que em rochas, quando o desafio é renunciarmos à nossa suficiência (suposta) sobre o comando das coisas. É preciso colocarmo-nos como eternos aprendizes frente à vida. Vida esta que se constitui dual, na forma e na consistência. Muitos equívocos sensoriais comandam nossas direções para além, gerando um senso espacial de dentro e fora. Pisamos assim num “mundo interior” e num “mundo exterior”, que nos leva à constância de movimentos dicotômicos e a uma indesejada mutilação de ser.


Num mundo de infinitas possibilidades, interior e exterior podem ser tomados apenas como recurso didático para mover-se na abstração. Abstrair significa recortar o que em si não se recorta. Tirar uma parte do todo, a qual, sozinha, nada significa. Estruturas egóicas desmoronam tragicamente ao tão somente conceber uma suposta ausência de um eu “interior”. Mas, dentro desta percepção, eu interior não existe, a não ser como ego-ismo, derrame do ego sobre todas as coisas, ou confinamento em si mesmo.


Existe um mundo dado e uma compreensão por vir sobre ele? Existe o vínculo entre a chama da consciência e o meio do qual se alimenta esta chama. E este vínculo não está explícito nem implícito em um corpo, mas em cada átomo do universo. Uma gota d’água está explícita em sua forma de gota, e implícita nos oceanos, mares, rios, chuva, neve e vapor. Na concepção material, conforme se organizam os átomos ou suas partículas, temos a diversidade infinita da vida, animada e inanimada. Para esta suposta força criativa e criadora em si mesma não há consciência de começo ou fim. Entretanto transpira um quê de inteligência neste espetáculo criativo de infinitas formas e consistências. Para o ser humano, perceber o mundo em exterior e interior parece resultar dos sentidos limitados que constituem o corpo físico. Mas existe algo mais do que isto. A interrogação sobre o tudo, e sobre si mesmo. Os átomos não parecem se interrogar, mas obedecer, independente das formas em que se manifestem, animal, vegetal ou mineral. O limite do dentro e do fora, quando se refere ao âmago de nosso próprio ser, à nossa alma, ao nosso ser-estar no mundo, é um chão propício a enraizar medo, insegurança e prepotência, e, o pior de tudo, solidão. O dentro aprisiona ou protege. O fora liberta e/ou expõe a riscos.


Vivemos todos imersos no mesmo oceano de vida, animada e inanimada aos nossos sentidos. Neste entendimento, não há dentro nem fora, há foco e desfoco, conforme nosso olhar e nossa consciência. Dentro de nós existe apenas sangue, músculos e ossos, limitados pela pele. O que ultrapassa esta condição é a chama da consciência, tramada de vontade e inteligência, e que transcende o limite de um corpo. Mas penso que não estamos condenados ao limite de nossa compreensão. Somos dotados da capacidade de ir além do simples método racional de apreender o mundo. Somos capazes de voltarmos às coisas mesmas e à nossa relação com tudo isto, e reaprendermos de forma contínua. Conhecer e aprender nunca se esgotam, seja com relação ao que for.


Para sempre e nunca mais resultam de uma visão parcial das coisas. Porque queremos eternizar determinadas coisas e extinguir determinadas outras, por meio de nossa vontade. Mas o que é eterno é o fluxo do espetáculo da vida e disto não podemos nos apropriar. Nosso livre arbítrio diz respeito somente a nós mesmos, ao nosso próprio movimento e às nossas escolhas, não se estende ao mundo em que estamos mergulhados, mas que se nos parece “fora” de nós. Se o livre arbítrio resultar do que está fora de nós, já é submissão ou dominação. Eternidade e constância não são paralelas que nunca se encontram. Quando ruem as paredes do mundo interior e exterior, estas supostas dualidades se encontram e se unificam, constituindo-se numa aliança entre o ser e o existir.


Entre as infinitas possibilidades, a racionalidade é um atributo nosso e nos vem da relação com as coisas. As coisas brotam da nossa racionalidade? Ou são algo em si mesmas? Se são algo em si mesmas, nós somos coisas? Se não são algo em si mesmas, mas brotam de nós, em ideias, o que somos nós? Caso a vida seja composta de forças opostas, existe vida além de nós. Se tais opostos se entrelaçam, será apenas uma consciência a mediar este entrelaço?


Pressinto que existe vida além do nosso entendimento, e isto é promissor. Mas este além não é dimensional, ou espacial. É tão somente racional. A racionalidade não se confina num cérebro, pois não estaria crescendo ao longo do tempo, mesmo frente a um aparente e contínuo extinguir-se na morte contumaz. Já seria outra coisa. Mas não é a vida outra coisa a cada segundo? Esta percepção pode ser enganosa, fruto do próprio limite físico. Produto de uma condição transitória no humano. Para pior, a verdade pode ser a de que apenas vagamos no cosmos, num vir a ser interminável, inalcançável e vazio. Mas acho isto improvável, diante do maravilhamento que nos enlaça e vivifica.


A grandiosidade da vida transpira o bem e o amor em onipresença. Só a eternidade nos plenifica de paz. A natureza do mal é o vazio, a ausência dos atributos do bem e do amor. No entanto, na dualidade humana bem e mal disputam o reino da eternidade e são antípodas, cada um na certeza da própria substância imaginada. E um vocifera ao outro com soberba, olhando para os próprios pés: Minha cabeça flutua nos altos céus, a tua nos abismos do inferno! Uma coisa nega a outra. Ambas são vazias de amor. Neste praguejar, ninguém entende de esferas e suas danças na imensidão do cosmos. Fico com a presença do amor.


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